Vamos falar de Kanashimi no
Belladonna, ou Belladonna of Sadness, ou A Tragédia de Belladonna, ou segundo
os detratores, a tragédia da peladona. Esse é um anime de 1973 e que está sendo comentado
mais agora porque ele foi restaurado em 2015. Tem um outro motivo por ele estar sendo comentado
mais agora, é porque quando ele saiu foi um fracasso, foi o que fez os estúdios Mushi falirem.
Vocês sabem, mas o estúdio Mushi foi fundado pelo Osamu Tezuka, grande nome
do mangá, do anime, e eles tinha
m um projeto de fazer animações er*ticas.
Gente, no final dos anos 60, 70 é isso aí. Isso acontece na França também.
Aliás, não é por acaso que eu falar de França porque esse anime, já adianto, é uma produção
japonesa, mas é basicamente uma animação francesa. Tem muito de França ali, até a estética do
cinema da Nouvelle Vague francesa está ali. Mas estou me adiantando.
Um dos projetos ali da Mushi era chamado Animerama, que era a produção
de animes adultos, e aí adultos a gente está falando a
qui mesmo de er*tico. ]
E é nessa toada que em 1969 sai As Mil e Uma Noites, em 1970 sai Cleópatra
e em 1973 sai A Tragédia de Belladonna. Comparado com os anteriores, A Tragédia
de Belladonna é muito mais conceitão, mas muito mais, absurdamente mais.
O roteiro é do Yoshiyuki Fukuda, no sentido original Fukuda Yoshiyuki, que
era um comunista militante, cabe ressaltar, e também é o roteiro e a direção do Eiichi
Yamamoto, no estilo original Yamamoto Eiichi. E é dito que o Yamamoto queria muito
fazer de A
Tragédia da Belladonna um filme bastante autoral, bastante artístico, e de fato acabou fazendo.
Para a galera dos dias de hoje, talvez, A Tragédia de Belladonna soe muito com desenho
desanimado, porque são longos e longos painéis, onde a câmera só está passeando por cima
do desenho, não é uma coisa frenética. Aliás, eu gosto muito desse anime pelo fato de ele
ir contra aquilo que virou estereótipo de anime, que são animações muito intensas,
movimentações muito fluídas. Não, A Tr
agédia de Belladonna é o exato oposto.
Ele é contemplativo, ele é plástico, a animação está através do estímulo sensorial, não
a partir de soco, poderzinho e correria. Sim, bastante, mas que, ao mesmo tempo,
encontra pontos de contato com os dias de hoje. Não, ele não tem o ar, ele tem tudo.
Ele tem o ar, ele tem a terra, o fogo, a água dos anos 60.
E sobre o que é A Tragédia de Belladonna? A história é focada na Belladonna, que é uma
mulher que vive em um período medieval, tipo, não tem dati
nha, mas dá tudo a entender, a
gente está lidando com uma certa estereotipia de idade média francesa.
O nome dela é Jeanne e ela está apaixonada pelo Jean.
E eles vão até o senhor Feudal, barão, e pedem autorização para casar.
E, para eles poderem casar, é solicitado um número tanto de vacas.
Jean não tem essas vacas, ele tem só uma, que é todo o sustento dele.
E daí entra em jogo algo que, até hoje, é muito fruto de polêmica entre historiadores,
que é o prima nocta, ou primeira noite, ou dire
ito da primeira noite, ou direito do senhor,
que é o fato de que, quando uma mulher ia casar, quem tinha o direito de deflorá-la, ou
seja, de tr*nsar com ela pela primeira vez, era o senhor soberano ali da região.
Isso não é um consenso entre historiadores, alguns dizem que os documentos que tem, que
atestam que isso existiu são bastante posteriores. Então tem a ver com uma certa produção de
caricatura para condenar práticas antigas, para se opor a medievalismos.
Mas tem outros que vão dizer
que, sim, isso rolava, sim, tem determinadas pistas,
determinadas indicações de que isso acontecia. Enfim, seja como for, independente se isso
existiu ou não, para a história, funciona. Você está assistindo a um corte de uma live
exclusiva para os apoiadores e membros do Quadrinhos na Sarjeta. Então, caso você queira
debater comigo filmes que ninguém mais dá bola, se torne um apoiador. Além disso, curta, se inscreva
e compartilhe esse vídeo, que ajuda bastante. E aí começa uma série de pol
êmicas em torno
dessa animação, porque ela foi feita por homens, só tem homem aqui envolvido nessa parada, exceto
as vozes, as vozes das personagens femininas, as canções, etc., mas é uma produção
masculina, eminentemente masculina. E ela se situa em uma treta que é
mais recente, que é do quanto filmes que procuram falar de ab*so se*ual acabam,
muitas vezes, fetichizando esse mesmo ab*so. Ou seja, aquela cena que era para passar uma
violência acaba, por vezes, se tornando um momento de goz
o, fica excitante, sacou?
Isso é desafiador para qualquer cineasta, para qualquer quadrinista, para qualquer artista
em geral, como você consegue retratar um momento de violência sem fazer daquilo algo sexy.
E isso já aparece de cara no começo da Tragédia de Belladonna, porque o rei ali, não é um rei, é
um barão, um soberano, vamos chamar de soberano. O soberano impõe que ele vai ter o direito
de ter a primeira noite com a Belladonna. Inclusive não fica claro se aquilo
também é estendido par
a os soldados, então pode ter sido uma violência coletiva.
Mas em termos de animação é muito bem feito, pelo amor de Deus…
É difícil mostrar isso no YouTube. Mas a maneira como ela é rasgada em termos
gráficos, ela é rasgada em termos metafóricos, mas plasticamente, tudo isso passa a sensação
de dor que ela está sentindo, tudo isso coloca as coisas de um jeito bastante visceral.
Porém, já entra aquele problema que é o do quanto algumas coisas começam a resvalar
para o fetiche, porque, vou ser
bem honesto, os gemidinhos da Belladonna fazem parte do
filme inteiro e é sempre muito excitante, ela está sempre gemendo, ela está sempre...
E você está ali assistindo, se está com a família junto já ficou esquisito,
então você vai mexendo com você. E assim, vamos falar sem pudor, você ficar de p***
duro, ficar com a p*reca molhada ou sei lá o que, diante do filme, não é um problema para o filme,
até tem a ver muito com as propostas daquela época, de fazer estímulos sensoriais, de fazer
c
om que o seu corpo se engaje junto da história, não é só o seu intelecto, o seu corpo também.
Se você está sentindo, ou suando, ou ficando quente demais, as coisas estão mudando no
seu corpo, isso, para quem fez o filme, é um ponto positivo.
Mas eu estou falando, não estou falando da história.
Então, o lance é que a Belladonna, a Jeanne quer ficar junto com o Jean…
Vamos chamar de Jean, nosso amigo Jean. E ela passa por essa violência.
Ele está profundamente incomodado por tudo aquilo. Ele até
por um primeiro momento tenta matar
ela, por pura vergonha de não ter conseguido proteger ela dessa situação e tal, mas
ele mesmo fala, vamos fingir que nada disso aconteceu e vamos começar a vida e ser
felizes, mas é claro que não vai ser possível. A Jeanne, por sua vez, diante desse trauma,
passa a ter a visita de uma entidade que, no começo, é um pequeno diabinho.
Me lembrou muito a contraparte masculina da Súcubo, como é o nome?
A Súcubo é aquela que vai atrás dos homens, devora os homen
s e tal.
Esse quadro aqui é do… é aquele quadro famoso daquele demônio em cima da mina dormindo…
John Henry Fuseli, está aqui. The Nightmare do John Henry Fuseli.
Mas só para voltar ao papo, Íncubo, que é a contraparte masculina, que é um
demônio que procura mulheres adormecidas a fim de ter uma relação se*ual com elas.
É exatamente esse bichinho, demoniozinho que aparece para a Belladonna.
E tem o quadro, que acabou… deixa eu pegar aqui, é lindo isso aí, e é igual…
Enfim! Aparece esse demônioz
inho ali para a nossa protagonista e ele logo de cara fala para
ela: eu sou você, eu sou o que cresce em você. E no começo ela pega ele e ela fica, na
falta de um verbo melhor… e o demôniozinho vai crescendo e ela vai se divertindo até
que ele vai se espalhando pelo corpo dela e, obviamente, leva ela ao orgasmo.
E aí muita gente pode criticar isso assim: cara, ela passou por uma violência tremenda e
como é que ela agora está, olha como o filme acaba fetichizando o tempo todo a personagem.
E,
sim, acho que essa crítica pode ser feita, mas também tem um outro elemento aí que eu acho
que é o que começa a tornar o filme interessante, que é o lance de que ela é uma mulher
que passou por uma violência, mas, ao mesmo tempo, ela está tentando, do jeito
que ela pode, retomar o seu próprio desejo. Ou seja, para dizer isso de uma outra forma, o
demoniozinho ali que fala para ela, eu sou você, é ela tentando, depois de ter passado por essa
violência, voltar a ter tesão, voltar a sentir co
nfortável com o próprio corpo, voltar a não ter
uma simples repulsa de si por tudo que passou. Então enquanto alegoria de estresse pós-traumático
e de tentativa de voltar a conseguir ter prazer, sobretudo para o se*ual, sem que isso
seja o signo de uma dor, de um sofrimento, de uma violência, eu acho que faz todo o sentido.
E esse ser é o demônio mesmo, ele vai crescendo como o desejo dela vai crescendo, então ele
vai ficando cada vez maior, mais poderoso, uma crítica que também muitas vezes
se faz
do quanto que ela parece ser simplesmente um joguete eternamente na mão de homens, seja lá do
barão, depois seja do marido, depois do demônio. Mas eu discordo, eu acho que ela conquista
um protagonismo até porque esse demônio, insisto, ele é uma figura ambígua.
Esse demônio de fato existe como um ser apartado da Jeanne, ou ele é a
própria Jeanne, até que ponto esse demônio masculino é um avatar dela própria.
Gente, de novo, esse filme foi feito ali no final dos anos 60, nos anos 70,
auge dos papos de psicanálise. Então dá para aqui fazer uma pira por meio de uma
leitura lacaniana do quanto o demônio é mais um dos nomes do pai, ou seja, um grande símbolo da
lei, do poder e que ela de alguma maneira consegue subvertê-lo, apartando dela própria e fazendo
dele um grande avatar daquilo que viola a lei, que diz: olha, as coisas têm que ser
assim, então vamos fazer o contrário. Ou seja, ela institui uma forma fálica de
poder que acima de tudo busca perversão, perverter a ord
em estabelecida, instituir
formas de prazer cada vez mais radicais. E é isso que vai acontecendo no arco dela.
Ela vai aos poucos se tornando numa típica bruxa, que aliás, isso é uma questão até
que eu esqueci de comentar no começo… A principal inspiração para o roteiro foi
a obra La Sorcière, do Jules Michelet, uma obra de 1962, que é um dos primeiros
livros a falar positivamente da bruxaria. Então tem a ver também com esse imaginário.
O anime surge nesse contexto onde a bruxa passa a ser r
econsiderada. Inclusive
como um grande símbolo feminista. É porque a mulher é, no nosso imaginário, um ser
muito mais próximo da natureza do que o homem. De novo, isso a nível de imaginário.
Não estou falando do ponto de vista biológico, científico, nada disso, imaginário.
Isso tem a ver com o fato de que a mulher menstrua, então o ciclo dela é um ciclo lunar.
Isso tem a ver com o fato de que a mulher procria, a mulher dá filhos.
Hoje a gente sabe que é metade do código genético de um e de out
ro, mas a gente
tem que lembrar que por muito tempo não se sabia direito como é que se dava reprodução.
Então a mulher é muito próxima da natureza. Ela tem uma série de elementos que constrói sobre
ela o imaginário de que ela é, entre os sexos, entre o masculino e o feminino, a mulher é
aquela que tem uma conexão com a natureza, o sagrado feminino, que é um estereótipo também.
O sagrado feminino é um estereótipo que se retoma muito, mas isso é o puro suco
do final dos 60 e início dos 70. Aqu
i a gente tem que fazer mais uma digressão, eu
vou ficar nessa ainda e voltando para a história, porque como é uma história muito lírica, que
não tem, na verdade, muito enredo, a ideia, insisto, é trazer imagens, ideias, sensações,
então a gente meio que vai pirando junto. Então uma coisa que faz com que esse
anime, A Tragédia de Belladonna, seja tão interessante e ao mesmo tempotão alinhado
com a sua época, é o quanto ele está próximo de uma série de manifestações cinematográficas,
sobret
udo da França, daquele período. Tem uma coisa interessante na Nouvelle
Vague, que foi esse movimento de vanguardista cinematográfico dos anos 60 na
França, um elemento típico da Novelle Vague é uma grande consternação diante da mulher.
Um filme que eu acho que sintetiza muito isso é O Desprezo do Jean-Luc Godard, que é um
filme de 68, deixa eu confirmar, não, 63. O Desprezo é um filme de 1963 do Godard e que tem
como protagonista a mulher, a Brigitte Bardot, que eu acho têm suas semelhanças
com a Belladonna.
A Brigitte Bardot por muito tempo foi o ideal de mulher, era replicado, ainda é replicado até hoje.
E esse filme é muito bom, esse filme do Godard, porque traz o tempo todo homens
que não entendem as mulheres. E a mulher ali é a protagonista sem ser, ou seja,
ela é a personagem principal, mas a gente nunca a entende, a gente não vê as coisas pelo olhar dela.
Se por um lado, ainda é uma coisa tudo muito centrada pelo olhar masculino, por outro lado,
tem a ver com essa ascensã
o do feminismo e esses homens dizendo: ok, eu não entendo ainda
as mulheres, mas eu agora estou disposto a manter em aberto esse não entendimento,
essa indecidibilidade sobre o que é a mulher. Ou seja, enquanto que os anos 50 falam que o lugar
da mulher é na cozinha, que o lugar da mulher é no tanque, essas coisas todas, os anos 60 falam: eu
não sei onde colocar a mulher, eu, como homem, não sei onde encaixá-la, eu não sei direito o
que ela pensa, eu não sei mais como me portar, talvez isso
aqui seja cavalheresco, mas,
por outro lado, isso aqui pode ser machista. Se vocês forem ver, muitas das tensões decorrentes
do feminismo como manifestação cultural têm a ver com isso, com essa indecisão ontológica,
estou falando bonito, com essa incapacidade da própria sociedade, aí entra homens, mas
também, talvez, até mesmo outras mulheres, essa dificuldade de conseguir agora
delimitar qual é o lugar da mulher. E o cinema francês dos anos 60,
70 explorou isso pra caramba. Sempre essas
mulheres enigmáticas, sempre
essas mulheres indecifráveis, sempre essas mulheres que têm um lado sagrado, sacro, místico,
mágico, mas também um lado profundamente profano, pé no chão, natural.
E o arco da Jeanne, da Belladonna, tem a ver com isso.
Ela vai cada vez mais se tornando uma bruxa e ela vai auxiliando os outros aldeões a se
tornarem cada vez mais sexualmente bem resolvidos. Aqui entra um outro contexto típico da
época, que foi a revolução sexual, sobretudo, o surgimento da pílula a
nticoncepcional. Então,
a partir de agora, estava liberado o tr*par. E aqui o anime faz essa projeção, faz
uma anacronia olhando para a idade média. Tem um momento que eu acho até bastante
emblemático, que é quando uma das mulheres ali da aldeia fala que agora ela está feliz, e
foi graças à Belladonna, que a partir de uma flor, que lembra muito uma vulva, consegue a todos
fazerem com que as pessoas relaxem, fiquem bem, que consigam se sentir confortáveis com
o próprio corpo e com o corpo d
os outros. Então, aqui você pega de novo elementos
que remetem demais ao que estava rolando na época, inclusive, o próprio papel da dr*ga.
A gente não pode esquecer que no final dos anos 60 e 70, a dr*ga não tinha o significado
que ela tem muito pelos dias de hoje. A dr*ga era vista como uma experiência de
expansão da consciência, de você experimentar outras formas de percepção de mundo.
Então, o alucinógeno, o lisérgico, ele tinha um papel social, um papel filosófico.
E o que nos conduz de v
olta, a questão da sexualidade, também servia como um desinibidor,
como alguma coisa que fazia com que a gente se sentisse mais bem resolvido, mais tranquilo com
o nosso próprio corpo e com os nossos desejos. E eu acho que A Tragédia de
Belladonna faz isso muito bem, mostra isso, produz um marco
disso que eu acho que funciona. Eu acho que é um sentimento mais antiguerra
como um todo, é essa coisa riponga. O choro do diabo, que, de novo, esse diabo
aqui, o estatuto dele está em questão, por
que ele se confunde com a própria Belladonna,
o choro do diabo é muito mais um reconhecimento do sofrimento, um reconhecimento de tudo aquilo
que nos fere, que vai contra os nossos desejos. Esse é um aspecto até quase que paradoxal.
O choro ocupa esse lugar não só do luto, do sofrimento, mas também do prazer, do
sentimento de satisfação de conseguir celebrar, nem que seja pelo choro, aquele que você ama.
Então, de certa maneira, o diabo aparecer, como aquele que também está associado ao
chor
o, tem a ver com você, mais uma vez, reafirmar o corpo perante uma espiritualidade. A ênfase não é que a alma foi parar
em um lugar melhor, a ênfase está na lágrima que se derrubou, da lágrima que o
corpo expeliu perante aquele que morreu. Dá para fazer muita leitura de linhagem psicanalítica com esse anime.
Ele dá abertura para isso. Sim, esse aspecto dúbio do que machuca
e do que dá alívio, do que fere, mas que também faz sentir bem, quer me parecer
que são só maneiras e maneiras de falar
do desejo, porque todo desejo também tem esse aspecto dúbio.
O desejo é dotado de atração, de coisas que nos atraem, de coisas que a gente quer ir em
direção a elas, mas também de repulsão, de coisas que nos afastam, que
nos incomodam, que nos perturbam justamente porque estão despertando na gente
um desejo que a gente não sabe como lidar. Então esse aspecto dúbio do desejo, que
é sempre confortável/desconfortável, o anime procura se cercar o tempo todo.
Até mesmo quando tem um momento em qu
e a gente tem a peste negra chegando, aquilo
é plasticamente lindo, traz um gozo, nem que seja visual, traz um deslumbre que, ao
mesmo tempo, a gente sabe que é a pura morte. A rainha ali, me parece, a rainha, a baronesa,
a soberana, a soberana consorte é mostrada como muito cruel desde o começo e ela é também
retratada muito como aquele tipo de personagem feminina que é a traidora das mulheres, porque
é o tipo de mulher que procura se afirmar... É tipo a rainha da Branca de Neve.
Ela procu
ra se afirmar entre os homens, mas ela não topa que haja concorrência com outra mulher.
Então, por um lado, ela é uma figura de empoderamento feminino, mas ela é uma
figura de empoderamento feminino solitária. Não pode ter outra mulher disputando
esse poder, porque se outra mulher estiver disputando esse poder, ela já não sabe
mais exatamente que lugar ela consegue ocupar, porque ela vai acabar sendo rebaixada.
Então, quando outra mulher desponta, bom, aí é preciso mobilizar os homens para qu
e ataque
essa concorrente, essa possível concorrente. E é exatamente o que acontece ali.
A baronesa manda o seu servo, que é um corcunda, atacar a Jeanne e depois
tem o arco do corcunda, que é profundamente apaixonado pela baronesa e eles têm um momento,
finalmente, de intimidade do corcunda com a baronesa e, inclusive, para derrubar todos os
espóderes, ela acaba sendo morta pelo barão, quando vê os dois felizes juntos no pós-coito.
O Jean, o homem que estamos falando tão pouco dele, também
tem um arco bastante particular,
porque ele é um camponês, depois ele acaba ascendendo socialmente, virando um cobrador de
impostos, que também consegue ser muito cruel, porém, ele mesmo encontra limites,
quando o barão lá se engaja em uma guerra e acaba perdendo uma mão como castigo.
Então, ele é tipo um personagem trágico, toda vez que ele caminha para algum tipo
de resolução, toda vez que as coisas estão indo bem na vida dele, elas acabam dando errado,
porque ele esbarra nos seus próprio
s fracassos. E isso se dá, mais uma vez, no final da
história, quando ele tenta salvar a Jeanne, tenta salvar a Belladonna, que a essa altura já
se confunde com a própria flor e não consegue. Porque esse é um ponto aqui que
eu acho decisivo e, mais uma vez, repito, tem tudo a ver com esse anime e é
por isso que ele é um anime sobre desejo. A Belladonna, a Jeanne, se torna mega poderosa,
mega influente, naquele ponto em que o barão não consegue mais, simplesmente, executar ela, toda a
aldei
a está do lado dela, ela se tornou uma bruxa, uma figura guia, uma pessoa que todo mundo
procura para ter os seus problemas resolvidos. Não é mostrado entre os soldados isso, mas dá
para imaginar, porque os soldados têm famílias, também, ali, entre a aldeia, então,
provavelmente, até mesmo, para mobilizar o exército para matar ela seria mais difícil.
Então, o barão convida ela e começa a dizer para ela: vamos fazer um acordo.
Ele não lembra, ele nem lembra que violou essa mulher e ele fala as
sim:
eu te dou isso, eu te dou aquilo. E ele vai abrindo concessão atrás de
concessão, atrás de concessão, vai dando para ela cargos cada vez mais altos, terras.
Ele vai dando um monte de coisa para ela, um monte de coisa e ela fala que ela não quer.
E aí ele pergunta o que ela quer e ela responde: tudo.
Cara, essa resposta é muito boa. Eu quero tudo.
Isso é o desejo. Existe uma discussão muito interessante entre
psicanalistas lacanianos e leitores de Deleuze, Guattari e outros filósofos sobr
e o que é desejo.
Para os lacanianos, desejo é falta, então, uma vez que…
Eu estou simplificando horrores. Mas tem a ver com uma falta radical e que, a
partir dessa falta radical, a gente mobiliza e vai atrás das coisas, mas a gente nunca dá
conta porque essa falta está na raiz das coisas, ou seja, você não consegue suprir essa falta.
Você tem um par de sapatos e você quer mais outro par de sapatos, mas pode ter
50 mil pares de sapatos e ainda assim você vai ter uma sensação de falta.
Já essa
linha mais Deleuzeana, etc, que vai remeter lá a Espinoza, desejo não é
falta, desejo é excesso, é um excedente, é algo que transborda não só dentro da gente, mas que
também se expande na própria realidade e o fim do desejo é a própria morte.
A gente só se afirma na vida, a gente só encontra uma potência de
agir porque a gente é um ser desejante. E eu acho que aqui no Belladonna
está mais nessa segunda linha. Ela quer tudo, ela virou uma espécie de encarnação
do excesso, você pode me dar t
erras, você pode me dar títulos de nobreza, você pode me dar o que
tiver para dar, mas você não consegue dar conta do meu desejo, porque o que eu quero é mais.
É como diria já o filósofo Espinoza, é querer e querer mais e mais e mais e mais e mais.
Aí a história faz mais uma licença poética, porque aqui o que a gente tem é uma mistura de
personagens e eventos, então tem a idade média, tem a peste negra, tem a revolução sexual e
tem o desfecho, agora para falar já do fim, que é a execução da B
elladonna, que
aqui basicamente ela está ocupando o papel da Joana d'Arc, só que fazendo
aqui uma subversão muito interessante. Enquanto que a Joana d'Arc é aquela que viu Deus,
a Jeanne, a nossa Joana, é aquela que viu o diabo, mas o diabo do desejo, é aquela que experimentou
a radicalidade do desejo e conseguiu ser generosa, conseguiu distribuir a todos.
Aí tem a ver um pouco com a própria palavra profano, profanar etimologicamente tem
a ver com tornar comum. Então a atitude profana da Be
lladonna nada mais é do que uma atitude
coletivista de tentar trazer para todos o direito, a liberdade do prazer, que encontre uma
alegria ou até mesmo um sofrimento acolhedor dentro do seu próprio corpo, dentro dos
seus próprios desejos, anseios, enfim! Tudo volta sempre para esse espaço de reconexão
consigo e com suas próprias sensações. Por isso que eu repito, esse anime é
extremamente sensorial, não é por acaso. Tem a ver não só com a estilística do anime,
mas com o discurso que ele pr
ocura sustentar. Exato, e ela é executada, crucificada.
Aqui a crítica ao cristianismo também típico daquele momento está muito, muito clara.
O cristianismo como uma manifestação de repressão do desejo, repressão do corpo, de sempre
lançar o nosso querer para um lugar pós-matéria, para o terreno do espiritual,
de tirar as coisas aqui do chão, do mundo e sempre, sempre aspirar um outro espaço.
E muitos dos movimentos ali do final dos anos 60, início dos 70, o que eles estavam demandando
é just
amente uma reconsideração do corpo, da matéria, do curtir, do desfrutar da vida que
não é uma vida que se espera depois da morte, não, a gente quer falar da vida
de agora, a gente quer aproveitar, vivenciar e experimentar ser pleno no agora a
partir do nosso corpo, a partir da nossa carne. Então assim, por tudo isso que o final ali, quando
a Jeanne, a Belladonna, acaba se contrapondo ali, acaba não cedendo ao que o barão quer dar para
ela e ela responde que ela quer tudo, bem, isso leva ela
até execução, ela é crucificada.
Então, como eu falei, o crucifixo ali não é elemento gratuito. E ela é queimada como
Joana d'Arc foi, como as bruxas foram. Por isso que eu falei que o Jean
ali é um personagem trágico e mais uma vez ele não consegue impedir
que as coisas aconteçam com ela. E esse é um ponto talvez interessante até
de pensar no enredo, não tem um homem herói, não tem a figura masculina heróica.
O máximo próximo de uma figura masculina heróica é o Jean que não consegue
fazer
nada, é um herói trágico. Ele, na verdade, nunca consegue salvar a donzela
indefesa, até porque ela não está indefesa. Uma coisa que é muito interessante também na
animação, mesmo ela sendo um desenho desanimado, digamos assim, é o jogo de olhares, são os
silêncios, são os balbucios de palavras, são as risadas que escapam, eu acho muito interessante
como que essa economia, esse minimalismo faz com que esses pequenos elementos quando aparecem
eles se tornem muito, muito relevantes. Belladon
na executada, daí vem uma cena, um
epílogo que cabe ressaltar que foi anexado depois. Houve no final dos anos 70 o esforço de retomar
para ver se tirava alguma grana com esse filme e aí surgiram versões com cenas mais pesadas
sendo cortadas e um dos epílogos que foram adicionados depois, mas que acabou virando,
está hoje presente na versão definitiva, são as imagens da Revolução Francesa.
E aí eu vou discordar de você aqui, Luiz Warke Aí que está, não tem, o que é mostrado no
final é que o
espírito da Belladonna está presente na revolução e aí você vê imagens
das mulheres presentes na Revolução Francesa e termina com a imagem da Liberdade do Lacroix,
que é um dos quadros sínteses, super romântico sobre a revolução, mas está ali a figura dessa
mulher imponente, poderosa, cheia de desejo, porque ela também é uma figura excitante, está
com o seu seio à mostra, está ali aquela figura cheia de desejo potente mostrando que é possível
mudar o mundo, que ela é a imagem da mudança. En
tão esse final que talvez pudesse ser
interpretado como um final de impotência, porque a Belladonna termina sendo queimada,
é uma subversão da própria narrativa cristã. Ela ressuscita, ela ressurge.
Ela foi crucificada, mas ela ressuscitou, não a Belladonna em si, a pessoa, mas todas
as mulheres do mundo que tiveram a sua alma, partilharam da essência da Belladonna.
Por isso que, no final, inclusive, também a gente vê todas as mulheres ali da aldeia passando
a ter o rosto dela, seria o espír
ito de rebeldia do feminino, seria o próprio sagrado feminino, mas
que esse sagrado não é um sagrado de conformação, de domesticação, é um sagrado revolucionário.
Dito tudo isso, vamos agora para a polêmica, A Tragédia de Belladonna é
uma obra feminista ou não é? Ela ainda fetichiza ab*so?
Ela ainda faz com que a gente veja uma personagem feminina que está o tempo
todo ali entre as artimanhas de homens, mas ao mesmo tempo ela procura trabalhar um
sentimento revolucionário ligado a uma própri
a essência feminina que, por sua vez, também
pode ser profundamente romantizada. Em resumo, eu acho que a resposta é que A Tragédia de
Belladonna diz muito sobre o esforço de pensar o feminismo no final dos 60 e início dos 70.
Inclusive o anime começou a ser produzido em 67, se não me falha a memória, e foi até
73, levou seis anos para ficar pronto. Então ele passou por todo esse período onde
esse debate aconteceu e que se esforça, eu acho que da melhor maneira que pode,
considerando que s
ão homens fazendo. Então eu acho que até eles foram muito
longe nesse esforço de pensar tudo isso, porque o que mais se tentou ali foi justamente
reconsiderar o feminino dentro dessa perplexidade, dentro dessa indecidibilidade, dessa
incapacidade de decidir o que é o feminino. Porque essa é a grande pergunta que o
feminismo, principalmente da segunda onda, coloca e que se estende até os dias de hoje.
O que é o feminino,? O que é ser mulher? E eu acho que o filme é muito honesto nessa
tentat
iva de trazer uma investigação sem necessariamente dar uma resposta, mas de, ao mesmo
tempo, apostar nesse feminino, como um signo, como uma imagem de revolução, de mudança.
Uma mudança profundamente radical perante o poder estabelecido que temos hoje, que seria um
poder patriarcal, violento, repressor, castrador. Não, porque uma mulher sozinha
também não vai dar resposta, entende? Não, é mais complicado que isso,
isso aí é acreditar em lugar de fala. Não, é mais complicado que isso.
Uma mul
her também não vai conseguir dar essa resposta, porque as mulheres são
diversas, porque as mulheres são diferentes, uma não consegue falar por todas.
Então essa perplexidade se mantém. Eu acho que aí também tem muito a ver com
discussões da época de você conciliar a companhia, de você ter um companheiro, de
você ter alguém para dividir a sua vida e, ao mesmo tempo, ter uma relação não
monogâmica, ter uma relação aberta, ou seja, você vive ali com aquela
pessoa, aquela pessoa é quem está ali
contigo para o que der e vier, mas vocês
podem tr*par com que vocês bem entenderem. Essa discussão, na verdade,
até está bastante atual. Não sei se no momento em que esse vídeo
estiver no ar, se ainda vai estar também A Tragédia de Belladonna, mas ela está inteirinha
no YouTube, inclusive legendada em português. Fica a sugestão para quem não assistiu que a veja.
E eu acho que era isso, deu, cansei de falar da peladona. Cansei não, é linda, a obra,
ela também, enfim, tudo muito bonitinho.
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